Estou já mais de duas semanas em Angola. É uma cultura muito diferente e não paro de aprender coisas. Depois de ter estado em duas grandes cidades, Luanda e Lubango, comecei a viajar pelo interior. A estas alturas já estive com muitas pessoas, preguei e ensinei uma porção de vezes. Compartilho algumas coisas a seguir.
Shangalala é uma Estação Missionária, que aqui chamam de “Missão”. No meio deste nada, composto de uma mata rala em um solo com aspecto desértico, tem uma série de construções que formam um grande complexo. Hospital (que está sem médico há 5 anos); escola de ensino fundamental, escola bíblica, igreja, gráfica, oficina, livraria, casas dos estudantes, casa de força (tem um gerador que funciona entre 9hs e 12hs e das 18hs às 21hs – só então tem energia elétrica), casas de missionários e funcionários que trabalham nas escolas, no serviço de ação social e ajuda humanitária. Devem ser umas 30 a 40 construções.
A Missão foi estabelecida por missionários alemães em inícios do século XX. Em 1973 chegaram missionários namibianos seguido dos finlandeses que entraram em Angola desde a Namíbia onde já tinham se chegado anteriormente. Traziam a Palavra e o pão para pessoas que muito pouco tinham. Ainda quanto aos portugueses, estes colonizaram e exploraram Angola por quase 500 anos. Nesta região só chegaram há uns 100 anos porque as terras não lhes eram atrativas. E também porque houve muita resistência, Aqui aconteceram muitas batalhas pelo domínio da área. Pastor Mário disse ontem: “neste sítio muitos portugueses e angolanos tombaram”.
Angola é um país riquíssimo em recursos naturais com vastas áreas de terras agriculturáveis. Muito de seu atual estágio de desenvolvimento, bastante atrasado em nosso conceito, tem a ver com uma história de mais de 40 anos de guerras que terminaram em 2003. Primeiro foi a guerra pela independência de Portugal deflagrada em 1961, tocada pelos Movimentos de Libertação (FNLA, MPLA e UNITA). Nesta época houve muito insegurança na Missão porque com a ajuda humanitária que aqui se prestava a população desassistida, os missionários evangélicos atraíram as desconfianças dos colonialistas católicos portugueses, que acusavam os primeiros de apoiar os terroristas. Com a vitória em 1975 sobre o poder colonialista veio a guerra civil pelo domínio do poder e das grandes riquezas angolanas, especialmente petróleo e diamantes. O poder e o domínio sobre as grandes riquezas naturais atiçaram os interesses internacionais dos russos e seus aliados cubanos e poloneses ao lado do MPLA (vencedor da guerra civil, mas já no poder de forma absoluta desde a independência) e do outro lado os americanos e seus aliados sul-africanos, que invadiram e dominaram por tempos largas regiões do sul do país, apoiando a UNITA.
As marcas destas guerras estão em muitos lugares. São carcaças de tanques e viaturas militares carcomidas na beira das estradas e matas e muitos monumentos aos combatentes tombados tanto angolanos e como aos “internacionalistas cubanos”. Foram milhões de mortos, não se sabe quantos!
Voltando a Shagalala : hoje tudo é mantido pelo governo finlandês em parceria com a IELA. Na Missão também mora o responsável da IELA pelo ministério de Evangelização e Missão. Trata-se do P. Dionísio Popawa que fez sua formação na FATEV entre 1999 e 2002. Daqui também se parte para o trabalho missionário entre tribos nômades que habitam nestas regiões. Conheci ontem o secretário e o evangelista da Congregação de Kuvelai, distante daqui uns 200kms, onde ainda há leões e onças ferozes pelas matas ao redor do lugarejo. Legal não é?
O povo desta região são os Ambo, com seus sub-grupos principais, as tribos Kwanhama e Mbanja. Recentemente se descobriu que um sub-grupo dos Nhaneka-Nkumbi, os Nkumbi, tinham seu próprio dialeto. Então foi iniciado pela IELA, em parceria com a Soc. Bíblica Angolana, a tradução da Bíblia para seu idioma. Ao meu lado está sentado o coordenador do Projeto de Tradução da Bíblia para este povo, Evangelista Joaquim Neto Jundo Tavares. Neste momento estão a trabalhar no N. Testamento.
Ontem fui apresentado a uma senhora que veio a Missão buscar ajuda numa distância de mais de 100kms. Faz parte dos nômades Kamusekeles um povo que mora em matas densas, não sabem construir seus abrigos e apenas agora estão aprendendo a fazer pequenas culturas, que abandonam quando a comida escasseia. P. Popawa que trabalha entre eles compartilhou que quando estão entre seu povo se comunicam por meio de silvos de língua e estalar dos dentes sem articular as palavras. Contudo aprendem rapidamente as línguas dos outros povos. Popawa disse também que muitos integrantes deste povo tem se chegado a fé e buscam o batismo na Igreja Luterana.
Nesta manha sai a caminhar um pouco pelas redondezas. Olhando da pequena elevação a beira do leito agora quase seco do Rio Cunene, que passa ao lado da Missão, e que conforme se me disse, em época das cheias cobre todas as florestas adjacentes por 3 a 4 meses, não se vê moradia dos nativos. O que pude ver, sendo sempre muito bem recebido na companhia da Pastora Joana como guia e tradutora, foi tudo muito original. Os Ambo moram espalhados pelas matas em seus quimbos, que são pátios cercados de estacas grossas de madeira, fincados no chão. Dentro destes cercados estão as suas cabanas circulares cobertos de palha. Cada “peça” da casa é uma cabana – cozinha, dispensa, quarto do casal, quarto dos filhos, sala de visita, etc – E a sala de visita é feita para receber somente os homens já que as mulheres e crianças vão direto para a cozinha. A visita masculina chega e senta em tocos pelo chão e fica esperando que o dono da casa o receba. Num destes quimbos esperei uns 10 minutos até vir o chefe da casa, que no caso era o presidente da Congregação Luterana de Shangalala. Depois de saudado, e a saudação é um ritual a parte, tive acesso ao restante da “casa”. Sorte minha que o moço falava português razoavelmente.
Nesta região a saúde é precária e as pessoas se socorrem no hospital da Missão onde há enfermeiras e medicamentos. Ainda há escolas que funcionam literalmente sob as árvores, com as crianças sentadas sobre latas vazias segurando seus cadernos no colo. Há muita pobreza e precariedade na vida destas pessoas. E, portanto, muito se pode fazer. Quem se deixa chamar? O apelo e a promessa de Rm 10. 13-15 continua a ecoar!
P. Dionísio disse que em muitos cultos na igreja da Missão famílias inteiras vem em grande número. Podem ser mais de 600 pessoas e por não caberem todos no grande templo, há pessoas que ficam pelos corredores e do lado de fora. Há Congregações nesta grande região que tem três a quatro mil membros!
Nesta manhã fiz uma palestra na igreja para um pequeno grupo de lideranças da Missão. Falei do que andava no meu coração – acabei compartilhando sobre a Parábola do Pastor (João 10.1-6) e de nosso aprendizado no Sítio com ovelhas e seu pastoreio. No fim tive que ouvir um apelo dramático da Enfermeira Chefe do Hospital e também do Pastor da Comunidade quase exigindo que voltasse para compartilhar com toda a Congregação sobre este aprendizado e outros ensinamentos. Não é o primeiro apelo destes que ouço nesta viagem e fico me perguntando o que posso e devo fazer.
É um relato longo. Mas eu tenho tempo nas horas livres e vou escrevendo meio como as coisas acontecem. Pena que a luz acabe cedo e o jeito é ir dormir às 21hs o que já não fazia com regularidade desde o século passado.
Um abraço,
Sergio A. Schaefer